quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Riso Desesperado do Desgosto

Sentei-me de pernas cruzadas sobre o lençol cheio de nós. As dobras dos meus dedos apertavam levemente a asa fina da xícara que espumava, uma linda peça da coleção de louças sujas prostradas ao acaso na escrivaninha. O silêncio e a meia-luz me apaziguaram de tal forma que quase esqueci que ela estava ali.

A principio, olhou-me de lado franzindo levemente os lábios, com aquele tipo de olhar que vira do avesso, mas seus passos decididos e graciosos me remetiam a uma expressão antiga muito diferente. Acocorou-se ao meu lado, os dentes extremamente brancos despontavam sob a boca avermelhada como punhais angelicais. Suspirei dolorido por já saber que a conversa era inevitável.

- Então, - sempre começava assim, floreios verbais não eram nem de longe seu forte – até quando pretendia me evitar?

Sorri com os olhos caídos. Descansando o chá com um leve clic no pires, encarei-a sem deixar de contrair as entranhas, a bile diluída em álcool corroendo-as feito veneno. A fuga na noite anterior fora de fato das mais covardes, dessas que as pessoas comuns costumam praticar periodicamente sem perceber. O fascínio da fantasia libertina me causara um fantástico alívio instantâneo, mas naquele momento, sentindo o mofo dos colchões se misturar com o suor etílico, tudo parecia tão estúpido e superficial que até a cova mais sórdida merecia mais que meus ossos.

É claro que já estava acostumado. Eterna sina dos insatisfeitos, aquele ciclo podia muito bem descrever o profundo marasmo que permeava minha vida nos últimos meses. Mesmo a dor mais excruciante e a vergonha mais desoladora, quando vivenciada diversas vezes pelo mesmo sujeito pode se tornar tão suportável quanto um dia nublado.

- Adiaria essa conversa enquanto fosse possível. – Disse por fim, com uma franqueza que realmente se agarrara a essa utopia. – Mas já esperava que me pegasse desprevenido.

Ela soltou uma gargalhada sarcástica e sonora, coçando o nariz em um movimento que certamente me faria rir em outra situação. Enxugando os cantos dos olhos que marejavam com aquela diversão de origem que eu desconhecia, deslizou as pernas para se acomodar na cama.

- Eu estava lá. – Seu tom súbito e sério me atingiu como uma chicotada nas ancas. – E és mais estúpido do que eu imaginava se conseguiu enganar-se ao ponto de acreditar que não. A máscara dos ébrios não é diferente de qualquer outra, não faz desaparecer a carne. Somente a esconde de um modo que não proteste, feito um covarde qualquer que mutila suas convicções em prol dos que o dominam. E assim, mutilando seu próprio ego, o ébrio destrói seus sentidos, recusando sua humanidade por não conseguir dominá-la.

Suas faces estavam rubras do sangue que fervilhava, as mãos trêmulas pelo discurso emocionado. Fitou-me por alguns minutos em completo silêncio, os olhos azuis penetravam nos meus que paralisados, já transbordavam lágrimas tímidas. Inspirou profundamente, erguendo-se com delicadeza para parar à porta.

- Essas decepções nada mais são que suas. Sinta por você mesmo e verás que o estrago é muito maior do que à primeira vista.

E dando-me as costas, girou a maçaneta como um arranhão e desapareceu no corredor enevoado. Como um sopro, como o fim de um surto que durou milésimos de segundos, acordei olhando para o chão encardido do quarto.

Fora arrebatado por minha própria consciência.

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